terça-feira, 16 de outubro de 2012


Ecos

Estava às voltas com minhas coisas de trabalho, entre papéis e livros, lá pelas três da madrugada, quando ouvi ao longe, muito longe, um galo cantando sua natureza solitária, quase um lamento, ecoando na cidade adormecida. Não sei por que o ouvi, quase sempre não escolhemos ouvir isto ou aquilo, fui solicitada por aquele som, que me levou a escutar outros sons, como o de minha própria voz, vinda de mais longe ainda, e nem era mais hora de acordar para o que quer que fosse.

Denise Magalhães

domingo, 30 de setembro de 2012


Fôlego
 
Grito todas as manhãs
Pra alcançar o chão nos pés da cama
Pra pendurar as folhas secas nas janelas
Pra desenhar milhões de letras no juízo
Pra varrer a poeira escura do coração
E sumir na floresta do sono
Quando a noite chegar
Com o seu grito.
 
Denise Magalhães

Amor 1
              Para Aliucha
Eis que tenho um sol
Um céu azul a perder de vista
Uma árvore que me sombreia
E um horizonte fiel
Para onde sempre vou
e que sempre vem pra mim
Com suas mãos firmes e delicadas
Que há tempos seguro, misteriosamente
E que um dia, pequeninas, ensinei a contar.
 
Denise Magalhães

 

 

domingo, 23 de setembro de 2012

Do provisório

Não gosto do provisório. As coisas provisórias trazem em si o gosto do não ser, já sabemos, de antemão, que não ficarão por muito tempo. Uma vez disse a alguém que eu era conservadora, digo no sentido genuíno desta palavra e no que se refere estritamente à minha vida. Gosto de conservar. Conservar amigos, o amor, a moradia, as lembranças, as coisas boas, e situações de conforto.  Compreendo e sei racionalmente que, em certa medida, esse é um projeto falido: ser conservadora.  Contudo, não sei me entregar ao provisório, ele me cheira ao não confiável,  é permeado do vazio, já se evapora e não consigo segurar em suas mãos.  Só sei me entregar ao que, pelo menos, se apresente com a promessa do estável,  do que pretende perdurar, criar raízes, ter história, se de-morar, mesmo que um dia se vá. As coisas e situações que já pretendem se instalar desde sempre como provisórias, têm cheiro do descartável, dessas coisas da moda, de prato e copo de aniversário, do que se usa apenas convenientemente e logo não se precisa mais, joga-se fora. Ou então coisa de baixa qualidade, que logo vai quebrar, dar defeito, enfim...  O provisório desde sempre não quer vínculo, laços, caminho, estrada, memória, verdade. Tem gosto do passageiro, impermanente, instável, sem consistência, prestes a sumir, desaparecer. Mesmo nós somos provisórios, bem sei, a qualquer momento já não seremos, não existiremos, vem a morte. Mas na vida a promessa do estável nos traz um gosto de duração, tranquilidade, segurança, paz e permite planos.  Paz tem esse gosto de comunhão com o absoluto do tempo, com o universo, com a própria vida.  O diacho é que, depois de tantas promessas descumpridas do estável e tantos atropelos do provisório não mais acredito em nada. E a vida segue assim, sem premissas, como deve ser. Quem sabe?...
Denise Magalhães


Afogamento

Mora em mim uma antiga saudade
Não tem procedência, tempo de vida,
 direção ou destino.
Sem qualquer aviso
Pedido de permissão
Fez de meu corpo seu leito perene
Profundo e estreito rio
Saído do início dos tempos
a passar, a passar, a passar
e a passar.
 
Denise Magalhães

quarta-feira, 12 de setembro de 2012


Amor 1
             Para Enrico

O homem nunca foi pra lua
A desistência do entendimento
O esgotamento de tanta palavra
A aprendição do tempo das coisas
O sorriso do meu menino
E as estrelas  do céu
que ele traz pra mim.


Denise Magalhães

Cantiga de roda
 
Ciranda, cirandinha, cirandando
o dizer das folhas que caem
o gosto oco do humano
socorre-me  uma brisa suave
bordada na colcha engomada
ou nos olhos da boneca de pano

Ciranda, cirandinha, cirandou
pois que fiz uma boneca de pano
pernas, tronco, mãos e braços
tão perfeita quase andou
estofo de algodão, lábios contentes
cabelo de lã, vestido de flor

Ciranda, cirandinha, cirandar
na casinha ela foi morar
com a brisa presa nos olhos
não podia respirar
 
Denise Magalhães

terça-feira, 28 de agosto de 2012


Caminhos

O vento que passa em minha rua
traz notícias humanas
não sei  ler seu idioma
mas ofereço meu rosto
para sua escrita diária
- estranhas marcas em meu espelho

                Denise Magalhães

terça-feira, 21 de agosto de 2012


Devaneios


Uma linha comprida me alça aos ventos
Como pipas em mãos que brincam
São crianças antigas
Não vão mais voltar.

Denise Magalhães

quinta-feira, 16 de agosto de 2012


Cena do filme australiano O casamento de Muriel de 1994 que traz no papel principal a atriz Toni Collette, aquela do filme a Pequena Miss Sunshine. O filme trata de maneira leve e divertida de temas como amor, casamento, superação e fundamentalmente de amizade. Este aspecto foi o que mais me chamou a atenção. A amizade das personagens principais, para mim, é o ponto forte do filme. A cena final é deliciosa e emocionante, aliás, o filme todo, sem contar a trilha sonora recheada do ABBA. Para quem gosta vai se divertir mais ainda com esse belo filme escrito e dirigido por P.J.Hogan. E por falar em amizade, termino aqui com um trecho da música Língua, de Caetano:

E sei que a poesia esta para a prosa,
Assim como o amor está para a amizade,
E quem ha de negar que esta lhe é superior”

Até,
Denise Magalhães

terça-feira, 7 de agosto de 2012


Da condição


O tempo canção longínqua
Prenhe de vidas e cosmos
Exsudações purulentas
Das patéticas relações humanas
Em meu jardim noturno
Linda flor de açucena
Torpe de inocência
No escuro céu perfumado
Milhões de asas desgarradas
Cegas de destino
Mas o frágil telhado das casas
Mas os olhinhos de passarinho acuado
Mas a minhoca que se diz cobra
E os dentes à mostra do cão
Preparado.

Denise Magalhaes



Do Infatigável

Lábios cor de carmim
No alto da madureza
Depois de tudo
Ainda esse regalo
Fonte de águas novinhas
Nascendo
Nascendo
Nascendo
E eu que já não sei
Nascer tanto assim.

    Denise Magalhães

quarta-feira, 18 de julho de 2012


Da inconsistência


Como se ser diante dos homens tristes
Dos homens crentes de toda razão
Da verdade de suas vidas e da dos outros
Como se a verdade fosse algo de verdade

Como se ser diante de olhos ressequidos
Como dos bonecos de pano
Costurados sob medida
Sem o gosto oco do humano

Denise Magalhães


sábado, 7 de julho de 2012

Cena do filme Janis e John


Acima, a bela Marie Trintignant interpretando Kozmic Blues em cena da comédia francesa “Janis e John”, onde seu personagem interpreta Janis Joplin. Este foi o último filme concluído pela atriz francesa, que foi morta pelo namorado cantor em 2003.

quinta-feira, 5 de julho de 2012


Coisas do sangue

Agora dei para desconversar sobre a solidão. Percebi isso há pouco, conversando com uma amiga. Des-conversar, não conversar, sobre a solidão. Talvez porque eu seja já a solidão. Agora, pensando neste momento sobre isso, enquanto escrevo, penso que não estou mais me sentindo só, pois que já sou a própria solidão. Ela é tão eu e eu sou tão ela que falar sobre, é muito difícil. Falar sobre algo que nos acomete talvez seja mais fácil. E falar da solidão não é falar sobre algo que me acomete, não me sinto mais só, pois que sou a solidão. Não mais a vejo, é como estar na água e por isso não ver a água, ou como o sangue que corre em nossas veias e não o vemos, nem mesmo pensamos ou falamos sobre ele, somos o nosso sangue. A solidão sou eu como sou meu sangue. Não entendo do sangue, não sei direito do que se constitui, como se movimenta, precisaria estudar biologia, bioquímica, sei lá. Sei que não me interesso em saber sobre o meu sangue, nem mesmo fazer aqueles exames enormes que classificam e dizem tudo sobre como está o sangue, se estamos com alguma doença, ou precisando de algum medicamento para fortalecê-lo, para continuarmos vivos. Não me interesso em saber como se constitui a solidão em mim, e o bom é que da solidão não se faz exames, não temos como saber se está fraca nem o que precisamos melhorar nela para continuarmos vivos. Talvez fosse bom sabermos quantificar e classificar a solidão para sabermos como mantê-la na justa medida da manutenção da vida. Pois é, da solidão não mais me ocupo, não vejo necessidade, nem vantagem, nem por quê. Talvez por isto tanto des-converso. Não sei mais falar da solidão, como geralmente não sabemos falar do nosso sangue. Não sinto mais a dor da solidão, como também não sentimos dor enquanto nosso sangue percorre nosso corpo. Do nosso sangue só nos damos conta se falamos sobre ele, da minha solidão também. Talvez tenha me desinteressado sobre o assunto, não quero saber da minha solidão, do meu ser solidão, nem fazer exame de sangue. Tenho que viver mesmo, então...é isso. Se algum dia eu ficar muito doente, provavelmente farei alguns exames de sangue e quem sabe as lâminas do laboratório indicarão a quantas anda a minha solidão.

Denise Magalhaes


sábado, 30 de junho de 2012

Li o belíssimo texto sobre o envelhecer "meu, nosso e vosso Destino"de Ângela em seu blog Aeronauta http://wwwaeronauta.blogspot.com.br/, e lembrei-me deste meu escrito, já postado há algum tempo neste blog; talvez porque tenha a ver com velhice e certas estranhezas outras "impróprias" para a idade.


Vertigem

Olho minha aparência bem comportada
E vejo um rosto enfurecido
Uma cabeleira desgrenhada
Numa armação esquisita.
Olho minhas mãos envelhecendo
E vejo uma textura opaca
Veias sobressaltadas
Riscos de memórias.
Nos meus dentes escovados
Restos de minha própria carne.

Dentro de mim, esse bicho
Sempre à espreita
Rondando, faminto.
Se me distraio ele ataca.

É sempre assim,
Esses olhos de cão sobre mim,
Esse tempo sanguinário,
Essa alma insana
e essa louca
a gargalhar por onde passo,
Como morte,
como algoz,
como sentença,
em mim.

Denise Magalhães

terça-feira, 19 de junho de 2012

"Atraente", composição de Chiquinha Gonzaga


Chiquinha Gonzaga nasceu no Rio de Janeiro em 1847. Foi a primeira compositora popular no Brasil, primeira pianista de choro, compôs a primeira marcha carnavalesca – Ô Abre Alas/1899- e foi a primeira mulher a reger uma orquestra no país; sofreu muito preconceito da sociedade da época .  Em maio deste ano foi sancionada a Lei 12.624 que institui o Dia Nacional da Música Popular Brasileira, 17 de outubro, data de nascimento desta compositora e maestrina. Seu primeiro sucesso foi a polca Atraente, 1877. Foto de Chiquinha Gonzaga aos 78 anos.

segunda-feira, 18 de junho de 2012

Carta para o fundo do mar


Meu querido,

Sei que os cabelos brancos que hoje vejo em mim, você também já deve ter em seu espelho, e que há muito, muito mesmo, não nos vemos ou falamos, e sequer sei onde moras. Mas escrevo-lhe deste lugar da vida para lhe agradecer pela eternidade vivida ao seu lado, há quem jamais a experimente. Ao seu lado, toda a adolescência, o primeiro beijo, o primeiro arrepio de desejo, o encontro às escondidas. Ao seu lado, o coração acelerado na pracinha do interior onde morávamos, as festinhas de quinze anos, os verões na praia, o carro emprestado do pai e toda a estrada pela frente para percorrermos juntos. Ao seu lado o amor mais puro, o futuro incontestável, o companheirismo garantido, os nomes dos filhos já escolhidos e o coração para sempre aquecido. Mas a vida se fez fissura e ficamos em lados opostos. Hoje, depois dos casamentos, filhos, separações, agradeço-lhe por aquela certeza, que só acontece uma vez na vida. Agradeço-lhe porque hoje, ao ouvir a "nossa" música, eu posso voltar àquele lugar, vivo de sonhos, sem nenhuma dúvida, que jamais se repetirá, e experimentá-lo novamente, com suavidade. Continuo seguindo adiante, com coragem, a vida e suas marés, mas nunca perderei esse lugar de vista, no fundo do mar. Fique bem.

De um barco na ventania,
 
 
Denise Magalhães

quinta-feira, 14 de junho de 2012


Irmandade


Na madrugada silenciosa
O lamento comprido de um cão
Vem de não sei onde
Como uma melodia horripilante
Um clamor não se sabe do que
Nem para quem

No cão,
É feito esse uivo rasgado
Forjado em seu instinto
Incompreendido
Grito saído de si mesmo
Sem qualquer sentido
Para ele
Que apenas porta
 o uivo solitário das correntes
que o encerram em  sua animalidade

Meu corpo compreende
Essas notas  em sangue
 Há muito silenciadas
Em sua estranha  natureza
Agradeço ao cão por me libertar
Por dizer assim
o que jamais saberei uivar.

Denise Magalhães


sexta-feira, 8 de junho de 2012


Viver :

Assobios do vento
Vozes penduradas
Porta- retratos
Invenção de riso
Criação de esquecimento

Denise Magalhães

sábado, 2 de junho de 2012



Caminhos

O vento que passa em minha rua
traz notícias humanas
não sei  ler seu idioma
mas ofereço meu corpo
para um dizer silencioso
das lembranças tuas.

Denise Magalhães

sexta-feira, 1 de junho de 2012


Os pés

Emoldurados na bainha do jeans
Displicentemente enchinelados
Totalmente descontextualizados
Sem qualquer individuação
delicadeza
ou compustura
Eles se exibem
devassos
Ali, no centro da sala
cheia de cadeiras,
pessoas, vozes
E me retiram do recinto
Inescrupulosamente
Masculinos


Denise Magalhães

quarta-feira, 30 de maio de 2012

Interiores

Diante da porta fechada
o transeunte anônimo
a cidade alienígena
Atrás da porta
minha casa em labaredas.

Denise Magalhães



Todas as manhãs
os dias
e os olhos vitrificados
mortos no domingo.

Denise Magalhães
Labirinto


Toda madrugada
esta onda
e seus braços enormes
seu rosto mascarado
açoitando meu corpo
profanando as lembranças
trancadas para sempre
no doce sepulcro da infância.

Denise Magalhães
A casa

Batem à porta
mas o que vejo
é o vazio de mãos humanas
Batem à porta
mas o que ouço
é o eco feliz da infância
Batem à porta
mas o que toco
é o peso maciço da solidão


Denise Magalhães

sábado, 19 de maio de 2012


Da madureza


Não quero que me compreendam
que me sigam
me aceitem
Já não preciso de aprovações
Licença da idade, talvez
Dos amargos da vida
Não queiram nem saber de mim
Agora sou trem descarrilhado
Rio fora da margem
Ventania sem direção
Se espalhando pelo céu
Devorando  a vastidão
Como é bom esse des-controle
De mim           
Tão solta
 Tão sim

  Denise Magalhães




quarta-feira, 16 de maio de 2012

Do cantar


Canto lá no meio do mato
Longe e em meio a tudo e todos
Que não me ouvem ou entendem
Pois que canto o canto em extinção
Canto para muitos
Ocupados com seus  quintais
Canto por sobre as cercas
Para horizontes  não inaugurados
Esse canto insólito,
Fora de moda
Nesses tempos
Para me sentir digna
De estar aqui
E da minha vida
É canto de sentido
Rico de solidão
 estofo
Na contramão.

Denise Magalhães






sexta-feira, 11 de maio de 2012



Alívio


Cresce em mim
o lugar nenhum:
 lapsos de memória
espasmos pelo corpo
um não saber,
um não sei quê.
Por aí,
Outra e só
Não encontro meu rosto
Sumido de mim
Enfim
Agradeço.

Denise Magalhães


segunda-feira, 7 de maio de 2012

domingo, 6 de maio de 2012


Carta para os que gostam da solidão de si:


O Estranho mundo das providências me absorvem cotidianamente, me arracam violentamente de mim mesma e me transforma em um modo de ser público, tumultuado, atormentado de tantas vozes, solicitações, premências. Passo por este perigo alienígena todos os dias, todas as horas. Por isso é preciso que eu esteja sempre atenta para não me perder, não sumir de mim. Preciso sempre me recolher no resguardo da minha singularidade, no silêncio da minha unicidade em meio a esse emaranhado de coisas, pessoas, afazeres. Preciso estreitar-me na estranheza familiar de mim mesma, no convívio íntimo e apaziguador de meus fantasmas, medos, no onírico, no meu dessaber de mim mesma, da vida, e de tudo o mais, no nada. Aquietar-me nas minhas idiossincrasias, no abraço branco e confortante das paredes de minha casa, nas sombras do meu quintal. Assim, ouço ao longe as agitações da cidade, mas elas não mais me atingem. Estou protegida no meu nada, completa e só. Na serenidade do mistério de tudo que não preciso saber, não quero saber, só quero estar nele e deixá-lo assim, como mistério, em mim. Com todo o seu tremor, temor e abismo. Essa é a sagrada vertigem da vida. Que consagro e que me deixo ser levada, onde gosto de demorar-me, onde me encontro genuinamente, e tenho paz.
Vertiginosamente,
Denise Magalhães





terça-feira, 24 de abril de 2012

"OS PERFUMES DA TERRA


Já falei do perfume do jasmim?já falei do cheiro do mar. A terra é perfumada. E eu me perfumo para intensificar o que sou. Por isso não posso usar perfumes que me contrariem. Perfumar-se é uma sabedoria instintiva. E como toda arte, exige algum conhecimento de si própria. Uso um perfume cujo nome não digo: é meu, sou eu. Duas amigas já me perguntaram o nome, eu disse, elas compraram. E deram-me de volta: simplesmente não eram elas. Não digo o nome também por segredo: é bom perfumar-se em segredo."


 Lispector,Clarice.A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984,p.188.

domingo, 8 de abril de 2012

Na varanda dos fundos:

Três prendedores vazios no varal
Os cães descansam sua animalidade
O branco dorme nas paredes
Os girassóis na toalha da mesa
As portas da frente já estão fechadas
Ouço um ruído que se repete
Insuportavelmente
São os segundos
Falando a mesma coisa de sempre
Do relógio amarelo
Que não sabe das horas
Nem dos dias
Nem de si
Não sabe de nada
Nada
O tempo não passa de
uma palavra
muito dolorida, muito
- Acabou o dia
Aborrecida, aviso ao relógio
Que não me ouve.


Denise Magalhães

quinta-feira, 5 de abril de 2012

Jeanne Hébuterne, “Portrait de la mère”.

Indizeres

Não que ele diga o que peço
Nem que faça o que espero
Não que eu queira esperar algo
Nem que a felicidade me atinja
Em algum olhar desprevenido
Não que acredite nisso tudo
Nem que o real se mostre de repente
Não que a escuridão nos abandone algum dia
Nem que a casa se levante novamente
Não que isso deva acontecer
Ou qualquer coisa de verdade
Ou a verdade
Nem assim morrerei na
hora marcada
É que o humano não se explicita
E tenho sonhos incuráveis
Sem dó.



Denise Magalhães

domingo, 25 de março de 2012

"A gente vai contra a corrente, até não poder resistir..."

Carta a amiga


Por aqui:

Os ventos anunciam o fim dos dias
as notícias dos homens tristes
as folhas gritam sua prisão
outras se jogam pelo chão
as casas estão mortas
os cães nos olham desolados
a noite resiste a nos cobrir
a lua aceita seu destino
e as curvas bem que quiseram esconder
esse lugar nenhum

Três baldes e duas bacias me espiam
Tem amanhã.

Denise Magalhães
Tremores


Tenho segredos inaudíveis
Que nem eu mesma quero saber
Sei que estão lá
Ou aqui
Não sei o lugar dos segredos
Nem quero saber
Segredos são para se guardar
Até de nós mesmos
Chegar lá é perigoso
E se estão aqui
tremo de medo

Pressinto-os
No vento das tardes de domingo
Nos vãos da casa arrumada
No cheiro da comida no fogão
No ventre parido tempos atrás
Nas árvores do quintal
Nas marcas do meu rosto
Nos dentes amarelados pelo tempo
Nas veias sob a pele fina das mãos
Nas rachaduras de meus pés
Já tão cansados de caminhar

Carrego nas costas
o peso dos meus segredos
como a tampa dos sepulcros
E invento a vida dos dias
Em segredo.

Denise Magalhães

sábado, 17 de março de 2012

Cotidianos

A evolução dos espíritos
a redenção da carne
as missões
os pecados
as confissões
a esperança
a vida eterna
e suas criativas invenções.
Perdão!

Denise Magalhães
Da miserabilidade


Ah! A vidinha pessoal
cheia de assuntos providenciais
conflitos da infância
esconderijos secretos
solidões meticulosamente disfarçadas
a dois, a um, a três...
e um arsenal de medos
escapulindo espetacularmente
pelos olhares compenetrados
crentes de um papel qualquer
assumido como tábua-de-salvação.
Entre uma esquina e outra
Livrai-nos de todo mal,
Amém.

Denise Magalhães
Perdi a natureza para o amor
e seus romances
promessas
planos
invenções.
E, para que não haja mal entendidos,
isso não é bom ou ruim.
É.

Denise Magalhães

domingo, 19 de fevereiro de 2012

Fotografias do filme Livro de Cabeçeira, de Peter Greenway


“Corpo
e livro estão abertos.
Face e página.
Corpo e página.
Sangue e tinta.
Ponta dos dedos,
debrum do rebordo.
A superfície do limite
de cada página é tão macia
As marcas d’água
são como veias fluidas.
As páginas são tão harmoniosas
na sua proporção
Que desarmonia
em seu conteúdo é impossível.”

Trecho de um dos poemas de Peter Greenway
escrito em japonês no corpo de personagem do filme
The pillow book, 1996 (Livro de Cabeceira), deste diretor e
traduzido por Rafael Raffaelli. O filme foi inspirado no livro da escritora
japonesa Sei Shonagon (c.967- c.1017), Makura
no soshi (Notas do travesseiro).


sábado, 18 de fevereiro de 2012

Sobre a beleza


A solidão tem muitas faces
Toscas indumentárias
Alegres cenários
Ingênuas tranquilidades

Por vezes até acreditamos longínqua
Certamente é quando mais entranhada está
Exalando seu ácido odor
Derramando seu visgo bolorado
Excrementos de sua passagem constante
Pelos porões de nosso ser


Escapa assim, pelos poros,
pelo canto dos olhos
travando os lábios
silenciando os ouvidos
com sua gargalhada grotesca e estridente

A alma, atormentada,
Teima em inventar ridículos antídotos
Contra esta, nossa genuína condição.


Tudo porque a vida insiste em prevalecer
Caótica, insana e bela.

Acho que vou gritar.


Denise Magalhães

sábado, 28 de janeiro de 2012

Lugar


Em volta de mim
nasceu um rio,
quando já nem esperava.

Veio completo:
caudaloso, com peixes,
árvores nas margens,
montanhas no horizonte,
sol, chuva, por do sol.

Desse jeito
não saio mais daqui.

Em tempo.


Denise Magalhães
Amor


Pintaram minhas unhas de lilás
fizeram as sobrancelhas
arrumaram o cabelo

puseram batom
disseram que fiquei bonita.
Hum! Espio não sei de onde, desconfiada.
Corro pra casa

leio Wislawa e Hilda
Não preciso do espelho.

Denise Magalhães
Reza


Ah! Este apartamento semimobiliado:
janelas mal vestidas
paredes despidas
estantes sem vozes
e os armários...quase sem mantimentos
só o mínimo necessário para alguns dias,
quando é habitado.

Tudo nele é para alguns dias
providenciado
improvisado
arrumado.

É que este apartamento, vos digo, ele passou
e no que se passou, não se deve morar
talvez habitar...o mínimo necessário, por alguns dias.

Ainda bem que eu sempre gostei de ouvir histórias:

Era uma vez...
amém
ajoelhada
na porta da entrada.

Fim.


Denise Magalhães