quinta-feira, 30 de outubro de 2014



Circunstância


Na varanda dos fundos:

Três pegadores vazios no varal
Os cães descansam sua animalidade
O branco dorme nas paredes
Os girassóis na toalha da mesa
As portas da frente já estão fechadas
E ouço um ruído que se repete
Insuportavelmente...

São os segundos
Falando a mesma coisa de sempre
Daquele relógio amarelo
Que não sabe das horas
Nem dos dias
Nem de si
Não sabe de nada
Nada
O tempo é uma palavra
Muito dolorida
Muito


Denise Magalhães


quarta-feira, 29 de outubro de 2014



Desabrigo


Passarinho indeciso
na porta da gaiola..

Iminências, quases e afins


Denise Magalhães

terça-feira, 28 de outubro de 2014



Carta a um amor que se foi:


Meu querido,

Obrigada por fazer reviver em mim
Todos os amores que tive
E desculpe por amar em você esses amores
Pois que te amo desse jeito
Tosco, envelhecido, acumulado e sem planos
Mas isto não diminui o que sinto por você
Amor doído, tomado por despedidas
Onde não sou mais inteira...
Desculpe por isso
Por esse amor genuíno
Desprovido de horizonte
Sem guarida, cais, ancoragem
Não tenho mais condições...
Desculpe por isso


Denise Magalhães




Cantoria

Caminho o caminho inverso
Daquele cheio de quereres
De horizonte vasto
e estradas sem fim

Caminho o caminho inverso
Com passadas leves
Curvas brandas
e silêncios aceitos

Caminho o caminho inverso
Na canção do agora
     ré
         mi
             fá   
                 só
Sim.



Denise Magalhães



Uma questão de privacidade



“Olha lá vai passando a procissão, se arrastando que nem cobra pelo chão”. Canção do Gil, que me veio num sábado à noite, quando vi passar, da janela do antigo sobrado onde morei boa parte da infância, uma das inúmeras procissões do ano em minha cidade. Com aquele cheiro familiar de vela acesa, de igreja antiga, com crianças vestidas de anjo, imagens de santos rodeadas de flores, padre, fiéis e mulheres com véu na cabeça e terço nas mãos. Eu, entre as pessoas que “vivem penando aqui na terra” , de repente estava ali, naqueles passos, que caminhei tantas vezes, fazendo ou cumprindo promessas infantis. Na canção, “as pessoas que nela vão passando, acreditam nas coisas lá do céu”..., e o céu, para aquela menina , era o teto azul da terra, sobre o qual “as coisas” ficavam, como num sótão, de onde me espionavam, os santos e os mortos, com seus olhos que tudo atravessavam, tudo, meu corpo, meus pensamentos, sonhos, desejos, temores, tudo viam, sabiam. Meu Deus, como eu não tinha privacidade!!!

Denise Magalhães