quarta-feira, 25 de março de 2009

Vertigem

Olho minha aparência bem comportada
E vejo um rosto enfurecido
Uma cabeleira desgrenhada
Numa armação esquisita.
Olho minhas mãos envelhecendo
E vejo uma textura opaca
Veias sobressaltadas
Riscos de memórias.
Nos meus dentes escovados
Restos de minha própria carne.

Dentro de mim, esse bicho
Sempre à espreita
Rondando, faminto.
Se me distraio ele ataca.

É sempre assim,
Esses olhos de cão sobre mim,
Esse tempo sanguinário,
Essa alma insana
e essa louca
a gargalhar por onde passo,
Como morte,
como algoz,
como sentença,
em mim.

Denise Magalhães

sexta-feira, 20 de março de 2009

Carta que não sabe dizer nº 1

Serei sincera e breve neste escrito não classificado. Estarei nua e outra em cada palavra que chegue. Verterei sangue e flores azuis, mas sobreviverei. Sobre todas as coisas que já são nossas digo: um homem não poderia evitar o brilho da lua ou a correnteza dos rios. Agora me diga amor, sob seu olhar primaveril, quem sou eu? Sob o seu olhar matreiro, quem posso ser? Já não me explicito em mim mesma. Se me traduzes me fale, pois já não sei dizer de mim, do que sou ou posso ser. Meu caminho é em viés. Você me contorna enquanto espaireço por aí. Já não sei bem dizer, não sei dizer bem. As palavras são traiçoeiras, gostam de brincar de nos fazer, fogem e me desfaço, surgem e por um milésimo de segundo me tenho. Mas as palavras são frágeis, são crianças. Sou quase sempre sem palavras, mas não me importo, elas que corram atrás de mim. Eu? Eu mesma? Chego antes, como vazio, disforme, elas que me encontrem e me revelem, não preciso disso. Viver vem antes de qualquer palavra. Viver é este instante, esse passo no ar, esse entre, que escapole, salta. As palavras que me encontrem nesse já, onde vou sendo por aí. Esse é o instante que não consigo dizer, onde as palavras não chegam, e só existe viver.
Saudações vertiginosas
Denise

quarta-feira, 11 de março de 2009

sábado, 7 de março de 2009

Ah! Essas janelinhas acesas
esquadrinhando a cidade por aí.
Não demora as primeiras estrelinhas.
Nada de novo: o mesmo grito.
De manhãzinha tudo silencia.
O pão de cada dia,
a fome de toda noite.
Vidinha!

Denise Magalhães

quinta-feira, 5 de março de 2009



Automat, 1927 -Edward Hopper

O assombro


Pedras descansam em jardins abandonados
cobertas de musgos.
Ventos de outono atiçam portas e vidraças.
Segredos tremem de porões envenenados.
Entre corredores descubro:
Sou o sorriso que saiu no lugar de um grito.

Denise Magalhães
Ventania


Olhos secos de futuro
E essas árvores aí na frente
O que agarra
as garras dos gatos
tão desgarrados?

Ah! A importância!!
Onde ela está?

Quisera agarrar algo
não fosse tão perigoso
quanto nada agarrar.
Quisera o medo
evitar o acontecimento.
Pra que tanta invenção?
In-venta-ção?
Já, tudo se varre novamente.

Ah! Essa incontornável condição de se ser
Nesta terra,
Logo hoje,
A essa hora,
E com tantas árvores aí...
na frente da casa.

Denise Magalhães
Brincadeira predileta


Fogo nos cabelos
Pimenta nos pés
Riso sem dono
Furacão de doer
E nada de explicações
Nenhuma.
Nadinha:comer tudo
E se lamber.

Poço fundo
Descampado
Borboleta amarela
Urtiga, cansanção
E nada de esperança
Nenhuma.
Nadinha: picula,
Esconde-esconde,
Ciranda e roda-gigante,
Então.

Denise Magalhães

Carta Primeira: Saudação de chegada

Olá! Sou eu!
Agora que você me lê, você pode me ver, sentindo qualquer coisa ou muitas coisas. Bem, escrevo para esticar um risco entre eu e você a não sei quantos quilômetros. Para esticar não sei quantas palavras, que se alongaram para chegar até você e por isso talvez você não as compreenda. Tente formatá-las encolhendo esse traço esticado feito corda de caneta azul, bic, com tampa, que vai ao som de Path Smith e Marianne Faithfull. Talvez demore um pouco pra você compreender porque não sei quantas voltas a terra vai dar em torno de si mesma até isso chegar até você. Mas isso não é o que estou dizendo, o que estou dizendo não posso escrever, está na corda de caneta azul, esticada, no traço da tinta que sai de mim e chega até você para você arrumar, certo? Sei que você saberá o que é, eu apenas escrevo o aqui e agora, saindo sem planejar, e sai isso que você está lendo. Eu gosto de escrever assim, sem assunto ou com muitos assuntos, todos os assuntos sem dizer o que são. Pra que tantos assuntos? Basta que eu chegue até você através desse monte de palavras ermas, loucas, sei lá... sou eu enfim que estou chegando aí, assim como sou, no momento já. Quando essa folha acabar eu acabo de escrever. Meu limite é o papel, que também é meu labirinto, meu esconderijo, meu tudo e meu nada. Escrevo assim, sem compromisso com a coerência ou com uma ordem de significados. Assim sinto-me livre para deixar fluir, porque sei que você me entende, então escorro por esse papel, escorro até você, porque só sei escorrer pela vida, escorro para encharcar você do que não consigo dizer, porque não sei dizer ou porque não se pode dizer. Pois é, eu sou assim, fluida, e mudo muito, o tempo todo, às vezes sem perceber já sou outra. Ocorre que talvez eu seja um pouco de todo mundo e como é muita gente que existe em mim, deve ser por isso que eu mudo tanto, sou tantas. Então, só fica essa linha imaginária, etérea e forte que me leva a escrever.
Até mais, clandestinamente

Denise